Encontro entre Renato Russo e Adriana Calcanhoto, no programa Por acaso, de 1994. Fazendo um dueto com Adriana, Renato mostra que também cantava (e muito bem) MPB. A letra da música “Esquadros” é carregada de significados e referências.
Segue abaixo a análise de Noemi Jaffe (professora e doutora de literatura pela usp), retirada do site www.adrianacalcanhotto.com:
"O sujeito da canção 'esquadros' começa definindo seu olhar sobre o mundo como um filtro mediador, um investigador metonímico da realidade que, ao invés de olhar as coisas, presta atenção nas cores das coisas ou, o que é ainda mais distante, na identificação das cores: “Cores de Almodóvar, cores de Frida Kahlo, cores...”, como se o cinema de um e a arte do outro pudessem ensinar esse eu encapsulado a olhar o real, que, no entanto, ao invés de aproximar-se, parece se distanciar cada vez mais e provocar a melancolia que percorre a canção e que provoca tantas perguntas.
“Esquadro” tem a mesma origem que“esquadrinhar”, “escrutar”, “perscrutar”, que significam sondar, buscar minuciosamente; “esquadro” ainda acrescenta a idéia de medir algo minuciosamente, munido de um instrumento medidor. Na canção, os olhos desse perscrutador do mundo estão enquadrados, "esquadrados", inevitavelmente instrumentalizados para ver, mesmo quando, quem sabe, gostariam de não estar. Trata-se de uma hiper-consciência do mundo que, nesse momento, lembra a angústia de um poema como “Os Ombros Suportam o Mundo”, de Drummond: “Ficaste sozinho, a luz apagou-se,/ mas na sombra teus olhos resplandecem enormes”. O sujeito da canção poderia até ser o mesmo eu-lírico do poema, cujos olhos – sua consciência – teimam em manter-se abertos, mesmo quando um eu exaurido gostaria de poder fechá-los.
Um eu que diz, na canção, que quer chegar antes – antes de quem? antes de quê? por quê? – para filtrar os graus de cada coisa e sinalizar seu estar. Mas tanto os filtros quanto a sinalização parecem dissolver-se diante da coisidão, da verdade dos “meninos que têm fome” e que continuam a ter fome, a despeito desse olhar fino que se debruça sobre eles e que chora ao telefone.
No estribilho – “pela janela do quarto/ pela janela do carro/ pela tela, pela janela/ (quem é ela, quem é ela?)/ eu vejo tudo enquadrado/ remoto controle” –, o controle remoto – objeto que normalmente serve para dar liberdade ao usuário, permitindo que ele faça suas escolhas sem mudar de posição e que possa alterar aquilo que não lhe convém – torna-se um “remoto controle”. A inversão da expressão mostra o quanto os enquadramentos só existem, na verdade, como ilusão de controle e como tudo está sempre nos escapando. Como se os esquadros (“uma segunda pele, um calo, uma casca, uma cápsula protetora”), que controlam as dimensões do objeto medido, servissem aqui como medida não de reconhecimento, mas de afastamento: “eu vejo tudo enquadrado”.
O olhar esquadrinhador e interpretativo como que suspende o indivíduo do transcorrer mecânico das coisas e ele não consegue, assim, pertencer a nada: “os automóveis correm para quê?”; “as crianças correm para onde?”; “eu canto para quem?”.
É justamente nas perguntas angustiadas sobre o seu lugar no mundo, seu significado, sua função, que o eu, porque canta, porque faz estas perguntas dentro de uma canção, acaba conseguindo sair do esquadro. É como se tudo se encaminhasse angustiadamente, a melodia inclusive, para a pergunta final: “meu amor, cadê você?”. Nesse momento, que deveria ser o clímax da angústia, tudo pode finalmente se desenquadrar e o sujeito pode, enfim, se reaproximar do mundo."
1 comentários:
Muito boa a análise da doutora Noemi Jaffe. Mas ainda acho que falta algo para completar o sentido da canção. Talvez a análise esteja muito crítica e real e não tenha percebido o que move toda a música, que é o censo de tudo que é imaginário e sentimental. Em "Esquadros", Adriana Calcanhoto falava de sua vida e, por conseqüente, de sua bissexualidade, de seu irmão, etc. E, na bissexualidade, está o fio da meada. Por isso o convite ao Renato Russo.
http://interpretacaopessoal.blogspot.com/
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